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Adeus, Luzia

Dormiu por tanto tempo a Luzia e no fundo da caverna esperou para mudar a história Mulher descavada e exposta na janela de vidro da memória Morreu duas vezes. Mulher negra, nossa mãe de criação, eva americana, elo perdido de um paraíso vilipendiado. Na fogueira do descaso, vira pó ao lado de tantas filhas exterminadas nesse país sem rosto de mulher
Não dá pra escrever uma coisa que não existe. Filho, quase cinco anos, refletindo sobre a escrita que ele recém conheceu e quer entender.

O NASCIMENTO DE JENIFER

Antes de haver tempo, nasceu da espuma das ondas ou de uma concha de madrepérola, uma deusa que seria dita do desejo, da beleza e do amor e todas as delícias humanas. Afrodite, depois Vênus, foi venerada e nunca esquecida. Já no tempo da história, um homem que pintava, dentre vários outros que desenhavam ou esculpiam, pensou nela como uma moça bonita de cabelos longos e vermelhos, que envolviam a sua nudez pudica. De um lado, um casal de ventos soprava sua chegada à costa; de outro, a ninfa primaveril ensaiava manter o seu recato com uma coberta de flores. Ontem nasceu Jenifer, expelida pela barriga da mãe, que foi morta e esmagada pela madeira que um caminhão levava. Recolhida pelo resgate entre as vísceras desta mulher que viajava de carona numa busca, talvez do desejo, da beleza e do amor. Naquelas brechas de carne e carga, a menina chorou e encontrou ar e vida. Resistente e teimosa insistência no meio do desastre, ganhou o manto prateado dos primeiros socorros e a lágrima

Esperando as águas

A água da chuva é uma água ansiosa. Foi o que o Pessoa falou. O mato espera, a lagoa espera, o corpo espera. Minhas águas chegam nesta espera pelo sutil tato calculado. Enquanto a chuva não parar ele não entrará por aquela porta. Até que a chuva não passe ele não irá embora. A chuva é uma água ansiosa e eu também sou

Um barco, não sabia se estava partindo ou chegando...

No sonho da moça o barco pairava perto de um porto. Imagem estática: uma fotografia noturna, tingida pela lua vermelha. Pintura que emanava cheiro quente de peixe e maresia de âncoras enferrujadas, cordas podres de velhos nós que se agarravam nas madeiras quase vivas de cracas. Renascidas a cada maré; pra dentro e pra fora das conchas... pra dentro e pra fora... Cortantes. Pirata. Marinheiro. Sentado de costas no barco que oscilava com a marola, no súbito único movimento daquele quadro. Com seus pés feitos raiz em terra, ela adivinhava seus olhos secos de sal, observando o eclipse, traçando os mapas no céu para a próxima partida .

Janela para o velho mundo

No banco duro do subterrâneo mais temido da polícia de fronteira do aeroporto da França estava a moça mexicana. Não falava francês, levava uma pequena mala e um sorriso assustado. Perguntei o que faltava a ela. A mim, com tudo legalizado, faltava apenas um carimbo no passaporte que a polícia “esquecera-se” de fazer. A ela, faltava quase tudo que se exigia para ser um turista na França: um seguro saúde, 60 euros por dia, a hospedagem. Antes de sair, acompanhada do único policial simpático em quilômetros, muito rápido consegui dizer-lhe “suerte!”. A intérprete dizia que ela ficaria detida por 24 horas. Depois ela mesma se corrigiu: detida não, retida. Em uma sala com cama e ducha, onde ela poderia tentar resolver sua situação, se não, seria deportada para o México. No mesmo pé que chegou, ela seria mandada embora. E assim começou minha vida no velho mundo: as portas fechadas para mais uma pessoa originária de um país da qual a França já tentou expandir seu império.

Ficção Cega na casa que não tinha paredes

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No dia que eu te encontrar de novo o mundo vai parar de rodar por uns instantes Eu vou te olhar e vamos começar a dançar uma música que talvez nem esteja tocando Eu vou deitar a cabeça no seu ombro, e, agarrada à sua mão, fechar os olhos De olhos fechados vou cheirar o seu pescoço e sua barba e seu cabelo E a música que não estava tocando vai emendar em outra e em outra Sei que vou secar uma lágrima em sua blusa, disfarçadamente E vou dizer, no pé do seu ouvido para que você nem ouça, meu amor